Na última década, pessoas residentes ou em trânsito no Brasil, assim como empresas instaladas no país, se tornaram alvos de espionagem da Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos (NSA). Não há números precisos, mas em janeiro passado o Brasil ficou pouco atrás dos Estados Unidos, que teve 2,3 bilhões de telefonemas e mensagens espionados.
É o que demonstram documentos coletados por Edward Joseph Snowden, técnico em redes de computação que trabalhou em programas da NSA com funcionários de empresas privadas subcontratadas, como a Booz Allen Hamilton e a Dell Corporation. No mês passado ele decidiu delatar as operações de vigilância de comunicações realizadas pela NSA dentro e fora dos Estados Unidos e se tornou responsável por um dos maiores vazamentos de segredos da história americana, que abalou a credibilidade do governo Barack Obama e colocou um prêmio em sua cabeça.
Os documentos da NSA são alarmantes. O Brasil, com extensas redes públicas e privadas digitalizadas, operadas por grandes companhias de telecomunicações e de internet, aparece destacado em mapas da agência americana como alvo prioritário no tráfego de telefonia e dados (origem e destino), ao lado de nações como China, Rússia, Irã e Paquistão. É incerto o número de pessoas e empresas espionadas no Brasil, mas há evidências de que o volume de dados capturados pelo sistema de filtragem nas redes locais de telefonia e internet é constante e em grande escala.
A NSA tem 35,2 mil funcionários, segundo documentos. Eles informam também que a agência mantém “parcerias estratégicas” para “apoiar missões” com mais de 80 das “maiores corporações globais” (nos setores de telecomunicações, provedores de internet, infraestrutura de redes, equipamentos, sistemas operacionais e aplicativos, entre outros). Para facilitar sua ação global, a agência também mantém parcerias com as maiores empresas de internet americanas. No último 6 de junho, o jornal “The Guardian” informou que o softwarePRISM permite à NSA acesso aos e-mails, conversas online e chamadas de voz de clientes de empresas como Facebook, Google, Microsoft, Apple, Yahoo! e YouTube.
No entanto, o PRISM não permite o acesso da agência a todo o universo de comunicações. Para ampliar seu raio de ação e construir o sistema de espionagem global que deseja, a agência desenvolveu outro programas com parceiros corporativos capazes de lhe fornecer acesso às comunicações internacionais. Um deles é o Fairview, usado pela NSA em parceria com uma telefônica dos EUA (cujio nome permanece em segredo) que mantém relações de negócios com outros serviços de telecomunicações, no Brasil e no mundo. “Os parceiros operam nos EUA, e não têm acesso a informações que transitam nas redes de uma nação; mas por meio de relacionamentos corporativos, fornecem acesso exclusivo às outras [empresas de telecomunicações e provedores de serviços de internet pelo mundo]”, explicam os documentos secretos.
Companhias de telecomunicações no Brasil têm esta parceria, mas não está claro se as empresas brasileiras estão cientes de como a sua parceria com a empresa dos EUA vem sendo utilizada.Certo mesmo é que a NSA usa o programa Fairview para acessar diretamente o sistema brasileiro de telecomunicações. E é este acesso que lhe permite recolher registros detalhados de telefonemas e e-mails de milhões de pessoas, empresas e instituições.
Para espionar comunicações de residentes ou empresas instaladas nos Estados Unidos, a NSAprecisa de autorização judicial emitida por um tribunal especial, mas fora das fronteiras americanas o jogo é diferente. Vigiar pessoas, empresas e instituições estrangeiras é missão daNSA definida em ordem presidencial há três décadas. Na prática, as fronteiras políticas e jurídicas acabam relativizadas pelos sistemas de coleta, processamento, armazenamento e distribuição das informações.
Desde 2008, por exemplo, o governo monitora com autorização judicial hábitos de navegação na internet dentro do território americano. Para tanto, exibiu com êxito um argumento no tribunal especial: o estudo da rotina online de “alvos” domésticos proporcionaria vigilância privilegiada sobre a prática online cotidiana de estrangeiros.
Assim, uma pessoa ou empresa “de interesse” residente no Brasil pode ter todas as suas ligações telefônicas e correspondências eletrônicas - enviadas ou recebidas - sob vigilância constante. A agência armazena todo tipo de registros (número discado, tronco e ramal usados, duração, data hora, local, endereço do remetente e do destinatário, bem como endereços de IP - assim como sites visitados). E faz o mesmo com quem estiver na outra ponta da linha, ou em outra tela de computador.
Começa aí a vigilância progressiva pela rede de relacionamento de cada interlocutor telefônico ou destinatário da correspondência eletrônica (e-mail, fax, SMS, vídeos, podcasts etc.). A interferência é sempre imperceptível: “Servimos em silêncio” - explica a inscrição numa placa de mármore exposta na sede da NSA em Washington.
Espionagem nesse nível, em escala global, era apenas uma suspeita até o mês passado, quando começaram a ser divulgados os milhares de documentos internos da agência coletados por Snowden. Desde então, convive-se com a reafirmação de algumas certezas - especialmente a de que, para os EUA, a Guerra Fria nunca acabou e o governo daquele país vive em uma verdadeira paranoia por causa de todos os seus crimes. Outra delas é a do fim da era da privacidade, em qualquer tempo e em qualquer lugar.