"E ouvireis de guerras e de rumores de guerras;..." Mateus 24:6.
Os quase 28 milhões de habitantes do Iêmen começam o ano novo com a esperança de um ponto final no que foi a maior crise humanitária do planeta em 2018. A guerra civil devastou o país nos últimos quatros anos. Fontes falam em dezenas de milhares de mortos – muitos deles pela fome espalhada pelo território desértico.
Longe da guerra e da desnutrição, um luxuoso palacete perto de Estocolmo, capital da Suécia, recebeu, em dezembro, os dois lados da Guerra do Iêmen. A 5,3 mil quilômetros dos combates, representantes do governo iemenita e dos rebeldes houthis concordaram em um cessar-fogo na cidade portuária de Hodeida, maior porta de entrada para o abastecimento no país.
Apesar do relativo sucesso nas mesas de negociações chefiadas pela Organização das Nações Unidas (ONU), os moradores de Hodeida disseram que o cessar-fogo pouco adiantou. Na mesma semana do acordo, houve relatos de tiros e bombas.
Como não há imprensa livre no Iêmen, é difícil afirmar, com precisão, se o suposto ataque deixou mortos ou feridos. Aliás, é difícil informar o número de mortos desde o início da guerra – há fontes que falam em 10 mil, mas outras dizem que 80 mil civis morreram no conflito.
Para explicar as razões de mais um ano de conflito e por que 2019 será decisivo para o desenrolar da Guerra no Iêmen – cujos reflexos podem se estender para o mundo todo –, o G1 listou os pontos mais relevantes sobre o assunto. Confira.
Como a guerra começou?
Os bombardeios aéreos que deram início ao conflito começaram em 2015. Mas, para explicar o início da Guerra do Iêmen, é preciso entender quem são os dois lados do conflito. Veja:
Governo do Iêmen. Reconhecido internacionalmente como presidente iemenita, Abdrabbuh Mansur Hadi assumiu o posto em 2011, substituindo Ali Abdullah Saleh. O governo constituído do Iêmen recebe apoio de uma coalizão liderada pela Arábia Saudita e países árabes de maioria sunita – uma das correntes do islamismo. Recebeu apoio, também, de Estados Unidos, França e Reino Unido, no início.
Rebeldes houthis. Representam a minoria xiita – outra corrente do islamismo – que vive no país. O nome houthi vem do antigo líder dessa minoria, chamado Hussein Al-Houthi, que encabeçou os protestos contra o governo ainda na década de 1990, quando o Iêmen do Sul se uniu ao do Norte após o fim da Guerra Fria. Recebe apoio do Irã, país majoritariamente xiita.
Os protestos dos houthis se intensificaram na década de 2000, e evoluíram para uma luta armada. Houve forte repressão por parte da base governista. Ainda assim, os conflitos ainda não tomavam conta do país inteiro.
A tensão se agravou em 2011. Naquele ano, o Oriente Médio vivia a Primavera Árabe – uma série de movimentos que derrubou regimes laicos e nacionalistas em países como Tunísia, Líbia e Egito. Os houthis conseguiram forçar a saída do então presidente Ali Abdullah Saleh. Assumiu o então vice. Abdrabbuh Mansur Hadi.
Em entrevista ao G1, o pesquisador Asher Orkaby, doutor em Estudos do Oriente Médio da Universidade de Harvard (Estados Unidos) disse que a Primavera Árabe não pode, em si, ser considerada o estopim para a guerra. "O movimento houthi é anterior a ela", comentou.
O novo presidente do Iêmen não foi capaz de amenizar a divisão no país. Os confrontos entre tropas governistas e lideranças houthis contiunaram nos anos seguintes, até que os rebeldes conseguiram tomar Sana'a, a capital iemenita, no fim de 2014. Mesmo alguns cidadãos sunitas – ou seja, de vertente islâmica diferente dos rebeldes – apoiaram o movimento.
Preocupado com o apoio do Irã aos houthis – que ganhavam cada vez mais poder – o governo do Iêmen conseguiu formar uma coalizão militar com a Arábia Saudita, país com quem divide a fronteira norte, e outras nações da região. Além disso, obteve o apoio armado de países como Estados Unidos, França e Reino Unido.
Em março de 2015, os ataques aéreos começaram, marcando o início da guerra – foram mais de 18 mil ofensivas aéreas desde então.
Por que a guerra importa para o resto do mundo?
A Guerra da Síria ofuscou o conflito no Iêmen nos anos anteriores, mas 2018 marcou como o ano em que o resto do mundo voltou os olhos ao país do sul da Península Arábica. Há três grandes motivos para essa atenção global. São eles:
A questão do Irã, que apoia os houthis;
O endurecimento das relações com a Arábia Saudita, pró-governo do Iêmen;
A crise humanitária gerada pela guerra.
Primeiro, uma vitória dos houthis no conflito significaria uma conquista para o Irã, que teria um aliado na Península Arábica. O governo iraniano, inimigo dos Estados Unidos, vive às rusgas com a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos – aliados dos norte-americanos – pela hegemonia no Oriente Médio.
No entanto, os EUA e outros países do Ocidente se afastaram dos sauditas neste ano. A Arábia Saudita foi criticada por antigos aliados por liderar os ataques aéreos que atingem inclusive civis no Iêmen. Tudo piorou depois da morte do jornalista Jamal Khashoggi – o colunista do "Washington Post" foi torturado e morto dentro da embaixada saudita em Istambul, na Turquia.
A irritação do Ocidente com a Arábia Saudita poderia ter levado ao fim ou a uma diminuição da presença da monarquia do rei Salman na Guerra do Iêmen. No entanto, o presidente dos EUA, Donald Trump, reforçou os laços com os sauditas – manobra criticada por outros países ocidentais e por parlamentares aliados e opositores dentro do Congresso norte-americano.
A comunidade internacional também pede pressa para o fim do que a ONU chama de maior crise humanitária de 2018. As imagens de crianças à beira da morte por desnutrição severa correram o mundo, e pressionaram as autoridades internacionais a tentar encontrar uma solução para o conflito. Entenda mais abaixo.
Por que o Iêmen vive uma crise humanitária?
O Iêmen é o país mais pobre do Oriente Médio, e a pobreza data de antes do início da guerra. O país está na lanterna da região tanto em Produto Interno Bruto – segundo dados do Fundo Monetário Internacional – quanto em Índice de Desenvolvimento Humano – de acordo com a ONU.
Guerras, evidentemente, pioram os índices pelas perdas humanas e pela destruição e desmantelamento de setores importantes da economia. Mas o caso do Iêmen tem um elemento a mais que piorou a já combalida qualidade de vida do país: o bloqueio ao porto de Hodeida.
Os bloqueios comerciais são impostos pelos sunitas sauditas, que impedem que ajuda humanitária e itens básicos, como comida, gás de cozinha e medicamentos, cheguem a 70% da população iemenita, apontou relatório da ONU.
Números da ONG Save The Children mostram que quase 85 mil crianças morreram de fome desde o início da guerra, em 2015 – mais uma vez, é difícil precisar o total de mortos no conflito devido à falta de uma imprensa livre no Iêmen e do isolamento do país.
Um dos poucos jornalistas que conseguiu entrar no Iêmen em guerra registrou a imagem da menina Amal Hussein, de 7 anos. A história, revelada pelo "New York Times", rodou o mundo e alertou para a gravidade do conflito no país. A criança morreu de desnutrição dias depois de a fotografia ir ao ar.
E como vai ser o 2019 do Iêmen?
Ainda é muito difícil dizer se a guerra vai acabar. Apesar do cessar-fogo em Hodeida, houve relatos de conflito na cidade logo depois de o acordo ser firmado na Suécia. Por isso, ainda não dá para dizer se o ano novo no Iêmen trará paz ao país.
"Embora houvesse esperança e otimismo ao fim da última sessão, os dois lados declararam vitória na volta para casa. E houve relatos de violação aos termos do acordo", ponderou o pesquisador Asher Orkaby, da Universidade de Harvard.
"Acordos internacionais chamam atenção, mas nem sempre produzem resultados tangíveis", afirmou Orkaby.
A ONU, então, prometeu fiscalizar de perto o fim das hostilidades em Hodeida. O enviado especial das Nações Unidas ao Iêmen, Martin Griffths, prometeu mandar forças de segurança à região para garantir o abastecimento do porto de Hodeida.
"Estar logo presente no local é uma parte essencial da confiança que precisa acompanhar a implementação deste acordo", afirmou Griffths a representantes do Conselho de Segurança da ONU.
Ainda assim, a libertação de Hodeida não define todo o ano do país. A crise entre houthis e governo continua, e dificilmente vai acabar tão cedo. Isso porque, para o pesquisador Orkaby, mesmo se os EUA retirarem o apoio armado à Arábia Saudita – que, por sua vez, participa ativamente no conflito – o conflito deve continuar. Afinal, segundo ele, outros países como China ou Rússia poderiam entrar na jogada.
"Parar de fornecer armas à Arábia Saudita soa bem à classe política, mas não resolverá, de fato, o problema", analisou Orkaby.
E, além disso, o pesquisador de Harvard assinala que guerra trata de questões internas talvez mais difíceis do que o xadrez geopolítico de EUA, Irã e Arábia Saudita.
"É, na verdade, o Iêmen descobrindo que tipo de país ele quer ser", comentou Orkaby.
Fonte: G1
Os quase 28 milhões de habitantes do Iêmen começam o ano novo com a esperança de um ponto final no que foi a maior crise humanitária do planeta em 2018. A guerra civil devastou o país nos últimos quatros anos. Fontes falam em dezenas de milhares de mortos – muitos deles pela fome espalhada pelo território desértico.
Longe da guerra e da desnutrição, um luxuoso palacete perto de Estocolmo, capital da Suécia, recebeu, em dezembro, os dois lados da Guerra do Iêmen. A 5,3 mil quilômetros dos combates, representantes do governo iemenita e dos rebeldes houthis concordaram em um cessar-fogo na cidade portuária de Hodeida, maior porta de entrada para o abastecimento no país.
Apesar do relativo sucesso nas mesas de negociações chefiadas pela Organização das Nações Unidas (ONU), os moradores de Hodeida disseram que o cessar-fogo pouco adiantou. Na mesma semana do acordo, houve relatos de tiros e bombas.
Como não há imprensa livre no Iêmen, é difícil afirmar, com precisão, se o suposto ataque deixou mortos ou feridos. Aliás, é difícil informar o número de mortos desde o início da guerra – há fontes que falam em 10 mil, mas outras dizem que 80 mil civis morreram no conflito.
Para explicar as razões de mais um ano de conflito e por que 2019 será decisivo para o desenrolar da Guerra no Iêmen – cujos reflexos podem se estender para o mundo todo –, o G1 listou os pontos mais relevantes sobre o assunto. Confira.
Como a guerra começou?
Os bombardeios aéreos que deram início ao conflito começaram em 2015. Mas, para explicar o início da Guerra do Iêmen, é preciso entender quem são os dois lados do conflito. Veja:
Governo do Iêmen. Reconhecido internacionalmente como presidente iemenita, Abdrabbuh Mansur Hadi assumiu o posto em 2011, substituindo Ali Abdullah Saleh. O governo constituído do Iêmen recebe apoio de uma coalizão liderada pela Arábia Saudita e países árabes de maioria sunita – uma das correntes do islamismo. Recebeu apoio, também, de Estados Unidos, França e Reino Unido, no início.
Rebeldes houthis. Representam a minoria xiita – outra corrente do islamismo – que vive no país. O nome houthi vem do antigo líder dessa minoria, chamado Hussein Al-Houthi, que encabeçou os protestos contra o governo ainda na década de 1990, quando o Iêmen do Sul se uniu ao do Norte após o fim da Guerra Fria. Recebe apoio do Irã, país majoritariamente xiita.
Os protestos dos houthis se intensificaram na década de 2000, e evoluíram para uma luta armada. Houve forte repressão por parte da base governista. Ainda assim, os conflitos ainda não tomavam conta do país inteiro.
A tensão se agravou em 2011. Naquele ano, o Oriente Médio vivia a Primavera Árabe – uma série de movimentos que derrubou regimes laicos e nacionalistas em países como Tunísia, Líbia e Egito. Os houthis conseguiram forçar a saída do então presidente Ali Abdullah Saleh. Assumiu o então vice. Abdrabbuh Mansur Hadi.
Em entrevista ao G1, o pesquisador Asher Orkaby, doutor em Estudos do Oriente Médio da Universidade de Harvard (Estados Unidos) disse que a Primavera Árabe não pode, em si, ser considerada o estopim para a guerra. "O movimento houthi é anterior a ela", comentou.
O novo presidente do Iêmen não foi capaz de amenizar a divisão no país. Os confrontos entre tropas governistas e lideranças houthis contiunaram nos anos seguintes, até que os rebeldes conseguiram tomar Sana'a, a capital iemenita, no fim de 2014. Mesmo alguns cidadãos sunitas – ou seja, de vertente islâmica diferente dos rebeldes – apoiaram o movimento.
Preocupado com o apoio do Irã aos houthis – que ganhavam cada vez mais poder – o governo do Iêmen conseguiu formar uma coalizão militar com a Arábia Saudita, país com quem divide a fronteira norte, e outras nações da região. Além disso, obteve o apoio armado de países como Estados Unidos, França e Reino Unido.
Em março de 2015, os ataques aéreos começaram, marcando o início da guerra – foram mais de 18 mil ofensivas aéreas desde então.
Por que a guerra importa para o resto do mundo?
A Guerra da Síria ofuscou o conflito no Iêmen nos anos anteriores, mas 2018 marcou como o ano em que o resto do mundo voltou os olhos ao país do sul da Península Arábica. Há três grandes motivos para essa atenção global. São eles:
A questão do Irã, que apoia os houthis;
O endurecimento das relações com a Arábia Saudita, pró-governo do Iêmen;
A crise humanitária gerada pela guerra.
Primeiro, uma vitória dos houthis no conflito significaria uma conquista para o Irã, que teria um aliado na Península Arábica. O governo iraniano, inimigo dos Estados Unidos, vive às rusgas com a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos – aliados dos norte-americanos – pela hegemonia no Oriente Médio.
No entanto, os EUA e outros países do Ocidente se afastaram dos sauditas neste ano. A Arábia Saudita foi criticada por antigos aliados por liderar os ataques aéreos que atingem inclusive civis no Iêmen. Tudo piorou depois da morte do jornalista Jamal Khashoggi – o colunista do "Washington Post" foi torturado e morto dentro da embaixada saudita em Istambul, na Turquia.
A irritação do Ocidente com a Arábia Saudita poderia ter levado ao fim ou a uma diminuição da presença da monarquia do rei Salman na Guerra do Iêmen. No entanto, o presidente dos EUA, Donald Trump, reforçou os laços com os sauditas – manobra criticada por outros países ocidentais e por parlamentares aliados e opositores dentro do Congresso norte-americano.
A comunidade internacional também pede pressa para o fim do que a ONU chama de maior crise humanitária de 2018. As imagens de crianças à beira da morte por desnutrição severa correram o mundo, e pressionaram as autoridades internacionais a tentar encontrar uma solução para o conflito. Entenda mais abaixo.
Por que o Iêmen vive uma crise humanitária?
O Iêmen é o país mais pobre do Oriente Médio, e a pobreza data de antes do início da guerra. O país está na lanterna da região tanto em Produto Interno Bruto – segundo dados do Fundo Monetário Internacional – quanto em Índice de Desenvolvimento Humano – de acordo com a ONU.
Guerras, evidentemente, pioram os índices pelas perdas humanas e pela destruição e desmantelamento de setores importantes da economia. Mas o caso do Iêmen tem um elemento a mais que piorou a já combalida qualidade de vida do país: o bloqueio ao porto de Hodeida.
Os bloqueios comerciais são impostos pelos sunitas sauditas, que impedem que ajuda humanitária e itens básicos, como comida, gás de cozinha e medicamentos, cheguem a 70% da população iemenita, apontou relatório da ONU.
Números da ONG Save The Children mostram que quase 85 mil crianças morreram de fome desde o início da guerra, em 2015 – mais uma vez, é difícil precisar o total de mortos no conflito devido à falta de uma imprensa livre no Iêmen e do isolamento do país.
Um dos poucos jornalistas que conseguiu entrar no Iêmen em guerra registrou a imagem da menina Amal Hussein, de 7 anos. A história, revelada pelo "New York Times", rodou o mundo e alertou para a gravidade do conflito no país. A criança morreu de desnutrição dias depois de a fotografia ir ao ar.
E como vai ser o 2019 do Iêmen?
Ainda é muito difícil dizer se a guerra vai acabar. Apesar do cessar-fogo em Hodeida, houve relatos de conflito na cidade logo depois de o acordo ser firmado na Suécia. Por isso, ainda não dá para dizer se o ano novo no Iêmen trará paz ao país.
"Embora houvesse esperança e otimismo ao fim da última sessão, os dois lados declararam vitória na volta para casa. E houve relatos de violação aos termos do acordo", ponderou o pesquisador Asher Orkaby, da Universidade de Harvard.
"Acordos internacionais chamam atenção, mas nem sempre produzem resultados tangíveis", afirmou Orkaby.
A ONU, então, prometeu fiscalizar de perto o fim das hostilidades em Hodeida. O enviado especial das Nações Unidas ao Iêmen, Martin Griffths, prometeu mandar forças de segurança à região para garantir o abastecimento do porto de Hodeida.
"Estar logo presente no local é uma parte essencial da confiança que precisa acompanhar a implementação deste acordo", afirmou Griffths a representantes do Conselho de Segurança da ONU.
Ainda assim, a libertação de Hodeida não define todo o ano do país. A crise entre houthis e governo continua, e dificilmente vai acabar tão cedo. Isso porque, para o pesquisador Orkaby, mesmo se os EUA retirarem o apoio armado à Arábia Saudita – que, por sua vez, participa ativamente no conflito – o conflito deve continuar. Afinal, segundo ele, outros países como China ou Rússia poderiam entrar na jogada.
"Parar de fornecer armas à Arábia Saudita soa bem à classe política, mas não resolverá, de fato, o problema", analisou Orkaby.
E, além disso, o pesquisador de Harvard assinala que guerra trata de questões internas talvez mais difíceis do que o xadrez geopolítico de EUA, Irã e Arábia Saudita.
"É, na verdade, o Iêmen descobrindo que tipo de país ele quer ser", comentou Orkaby.
Fonte: G1
Tags:
Últimas Notícias